RELATOR: Ministro Celso de Mello
DECISÃO: Trata-se de ação direta, com pedido de medida cautelar, que, proposta pela Associação Nacional dos Procuradores de Estado – ANAPE, visa à declaração de inconstitucionalidade “(…) da alínea ‘a’, do inciso I, do art. 3º da Lei Estadual nº 8.186 de 2007, na parte em que dá poderes à Secretaria de Estado de Governo a promover a ‘assessoria, na elaboração de documentos jurídicos’ diretamente ao Chefe do Poder Executivo; e dos artigos 16 e 19, e do Anexo IV da mesma Lei (nº 8.186 de 2007), e alterações referidas, mormente pelos anexos das leis 9332/2011 e 9350/2011, todos esses apenas quando se referem aos itens que criam os cargos de consultor jurídico do governo, coordenador da assessoria jurídica, e assistente jurídico, por violação ao art. 132 da Constituição da República (…)” (grifei).
1. Normas estaduais impugnadas.
Os preceitos normativos em questão possuem o seguinte conteúdo material:
“LEI Nº 8.186, DE 16 DE MARÇO DE 2007
Art. 3º. Os Órgãos integrantes da Estrutura Organizacional da Administração Direta do Poder Executivo têm as seguintes finalidades e competências:
I – SECRETARIA DE ESTADO DE GOVERNO
a) apoiar o Chefe do Poder Executivo em assuntos relativos à gestão da administração pública, através da assessoria, na elaboração de documentos jurídicos, na sua publicação, veiculação e em outras providências que se fizerem necessárias;
(…)
Art. 16. Ficam criados e integrados à Estrutura Organizacional do Poder Executivo os cargos, de provimento em comissão, definidos no Anexo II desta lei, necessários ao funcionamento dos órgãos constantes no Art. 1º, salvo da Procuradoria Geral do Estado e da Defensoria Pública.
(…)
Art. 19. Ficam definidos, na forma do Anexo IV desta lei, os cargos de provimento em comissão e as funções gratificadas, criados na forma dos artigos anteriores, pertencentes às estruturas dos órgãos definidos no Art. 1º, salvo da Procuradoria Geral do Estado e da Defensoria Pública.
[…]
ANEXO IV
Cargos Integrantes da Estrutura Organizacional dos Órgãos da Administração Direta Estadual
CARGO / SÍMBOLO / QUANTITATIVO
(…)
2. (…)
– Consultor Jurídico do Governo CAD-1 / 1
– Secretário da Consultoria Jurídica do Governo CAD-7 / 1
– Coordenador de Apoio Administrativo da Consultoria Jurídica do Governo CAD-4 /1
– Assistente Jurídico da Consultoria Jurídica do Governo CAD-6 / 3
3. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Controladoria Geral do Estado CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Controladoria Geral do Estado CAD-6 / 2
4. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Comunicação Institucional CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Comunicação institucional CAD-6 / 1
5. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Administração CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Administração CAD-6 / 13
6. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Planejamento e Gestão CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Planejamento e Gestão CAD-6 / 2
7. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado das Finanças CAD-4 / 1
8. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Receita CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Receita CAD-6 / 3
9. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Educação CAD-4 / 1
(alterado pelo Anexo Único da Lei nº 9.332/2011)
10. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Saúde CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Saúde CAD-6 / 2
11. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de Segurança e da Defesa Social CAD-6 / 3
12. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária CAD-4 / 1 (alterado pelo Anexo Único da Lei nº 9.332/2011)
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária CAD-6 / 2 (alterado pelo Anexo Único da Lei nº 9.332/2011)
13. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Humano CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Humano CAD-6 / 1
14. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Cultura CAD-4 / 1 (alterado pelo Anexo Único da Lei nº 9.332/2011)
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Cultura CAD-6 / 1 (alterado pelo Anexo Único da Lei nº 9.332/2011)
15. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Infra-Estrutura CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Infra-Estrutura CAD-6 / 1
16. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Turismo e do Desenvolvimento
Econômico CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Turismo e do Desenvolvimento
Econômico CAD-6 / 2
17. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Ciência e do Meio Ambiente CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Ciência e do Meio Ambiente CAD-6 / 1
18. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Desenvolvimento da Agropecuária e da
Pesca CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Desenvolvimento da Agropecuária e da
Pesca CAD-6 / 2
19. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Juventude, Esporte e Lazer CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Juventude, Esporte e Lazer CAD-6 / 1
(…)
20. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Interiorização da Ação do Governo CAD-4 / 1
– Assistente Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado da Interiorização da Ação do
Governo CAD-6 /1
21. (…)
– Coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Desenvolvimento e da Articulação
Municipal CAD-4 / 1
(alterado pelo Anexo I da Lei nº 9.350/2011).” (grifei)
2. Fundamento da pretensão de inconstitucionalidade.
Sustenta-se, na presente sede de controle abstrato, em síntese, que referidos dispositivos do diploma legislativo estadual ora impugnado teriam incorrido em transgressão ao art. 132 da Constituição da República, considerados os fundamentos que assim foram expostos pela ANAPE:
“(…) a consultoria e a representação judicial são tarefas que apenas os Procuradores de Estado, organizados em carreira em cada Unidade Federativa, podem desempenhar. Essa foi a forma encontrada para permitir e estimular, em cada uma das estruturas estatais, a efetiva concretização dos princípios constitucionais atinentes à Administração Pública. Isso porque, num Estado Democrático de Direito não há discricionariedade estatal em se submeter às leis e decisões judiciais. Isto é, os órgãos de exercício das funções essenciais do poder político também estão submetidos à normatividade jurídica e os Procuradores do Estado são os agentes encarregados de velar por essa submissão do Poder ao Direito. Dessa forma esses agentes contribuem até mesmo para o desafogamento de demandas no próprio judiciário, conduzindo o ente estatal a um norte de legitimidade e prudência.
Salta aos olhos o propósito resultante da dicção dos dispositivos questionados, qual seja, de retirar dos Procuradores do Estado da Paraíba a prerrogativa constitucional de exclusividade na consultoria e assessoria jurídicas e na representação judicial. Ora, é possível que a interpretação conduza a um resultado que permita aos assistentes jurídicos e demais comissionados a atribuição das mesmas funções dos Procuradores na Administração Direta.
Como dito, a exclusividade dessas atividades de representação e consultoria jurídica da unidade federada não pode ser afrontada por dispositivo infraconstitucional estadual que delegue as mesmas funções e prerrogativas a outros agentes públicos. Por isso, a criação de cargos de assessores jurídicos, sejam assistentes, consultores ou outra nomenclatura atribuída pela norma, é totalmente inconstitucional. (…).
…………………………………………………………………………………………
O tema ganha contornos tão evidentes na jurisprudência da Corte, que se encontra em trâmite a Proposta de Súmula Vinculante n. 18, reconhecendo taxativamente que o exercício das funções da Advocacia Pública constitui atividade exclusiva dos advogados públicos efetivos, organizados em carreira e aprovados em concurso público, revelando-se de sua teleologia que não é permitido a terceiros, senão aos próprios advogados públicos, o exercício das funções de representação do Estado e sua consultoria jurídica.” (grifei)
Solicitadas, previamente, as informações necessárias à apreciação do pedido de medida cautelar, prestaram-nas o Governador e a Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, defendendo, ambos, a plena constitucionalidade das normas ora questionadas.
3. Manifestações (parcialmente) favoráveis da AGU e da PGR.
Ante a relevância do tema versado na presente ação direta, determinei a audiência prévia do eminente Advogado-Geral da União, que se pronunciou pela parcial procedência do pedido formulado nesta sede processual, enfatizando, de outro lado, que o juízo de inconstitucionalidade somente não deve atingir “os artigos 16 e 19 da Lei nº 8.186/07, os quais permanecem válidos em relação aos demais cargos comissionados definidos nos anexos desse diploma legal que não envolvam o assessoramento jurídico combatido pela requerente” (grifei).
O Ministério Público Federal, por sua vez, em pronunciamento emanado da douta Procuradoria-Geral da República, ao opinar na presente sede de fiscalização normativa abstrata, manifestou-se em parecer assim ementado:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Dispositivos da Lei 8.186/2007, do Estado da Paraíba. Criação de cargos de provimento em comissão para consultoria jurídica do Poder Executivo. Preliminar. Não conhecimento quanto aos cargos constantes do Anexo II, referido pelo art. 16, e que não possuem natureza de consultoria jurídica. Mérito. Atribuição exclusiva dos Procuradores dos Estados (art. 132, da CR). Parecer pela parcial procedência do pedido.” (grifei)
Sendo esse o contexto, e subsistindo as razões de urgência invocadas pela autora (ANAPE), passo a apreciar, “ad referendum” do E. Plenário deste Tribunal (RISTF, art. 21, V), o pedido de suspensão cautelar de eficácia das normas legais ora impugnadas.
4. Legitimidade ativa “ad causam” da ANAPE: Precedentes.
Reconheço, preliminarmente, que a ANAPE dispõe de legitimidade ativa “ad causam” para fazer instaurar este processo de controle normativo abstrato, considerando, para tanto, precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 159/PA, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – ADI 824-MC/MT, Rel. Min. FRANCISCO REZEK – ADI 1.120-MC/PA, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – ADI 1.557/DF, Rel. Min. ELLEN GRACIE – ADI 1.679/GO, Rel. Min. GILMAR MENDES – ADI 4.261/RO, Rel. Min. AYRES BRITTO, v.g.).
Impende assinalar, neste ponto, que o exame dos estatutos sociais da ANAPE – que congrega membros componentes da carreira jurídica de Procurador dos Estados-membros e do Distrito Federal – evidencia que se trata de entidade de classe de âmbito nacional, cuja estrutura permite assimilá-la a outras entidades de classe, como a CONAMP (RTJ 189/200), a AMB (ADI 3.053/PA), a ADEPOL (ADI 1.517/União Federal), a ANAUNI (RTJ 186/969-970), a AJUFE (ADI 3.126/DF) e a ANAMATRA (ADI 2.885/SE), a quem esta Suprema Corte reconheceu assistir qualidade para agir em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade.
5. Configuração, na espécie, do vínculo de pertinência temática.
Cabe verificar, agora, se se registra, na espécie, o requisito concernente à pertinência temática, que se caracteriza – na linha do magistério jurisprudencial que esta Corte firmou na matéria – pela existência de nexo de afinidade entre os objetivos institucionais da associação de classe que ajuíza a ação direta e o conteúdo material do diploma legislativo por ela impugnado em referida sede processual.
Entendo existir, no caso, o nexo de pertinência temática, eis que o conteúdo do diploma estadual ora questionado – criação de cargos/funções típicas de consultoria e de assistência jurídica do Poder Executivo estadual – relaciona-se, de modo direto, com a finalidade institucional da entidade de classe autora, como resulta claro do art. 1º do seu estatuto social, que prevê, dentre os objetivos da ANAPE, o de “representar e defender, de forma exclusiva, em nível nacional, os interesses relacionados com o exercício funcional dos seus associados, ativos e inativos, bem como no sentido de consolidar a Advocacia de Estado como instituição essencial à Justiça, ao regime de legalidade da Administração Pública e ao Estado Democrático de Direito”.
Vale relembrar, no ponto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o alcance da cláusula inscrita no art. 103, inciso IX, da Carta Política – e após definir o vínculo de pertinência temática como requisito caracterizador da própria legitimidade ativa “ad causam” das entidades de classe e das confederações sindicais para o processo de controle abstrato de constitucionalidade (ADI 138-MC/RJ, Rel. Min. SYDNEY SANCHES – ADI 396-MC/DF, Rel. Min. PAULO BROSSARD – ADI 1.037-MC/SC, Rel. Min. MOREIRA ALVES – ADI 1.096-MC/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO – ADI 1.159-MC/AP, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – ADI 1.414-MC/RS, Rel. Min. SYDNEY SANCHES) –, firmou orientação no sentido de atribuir, à ANAPE, qualidade para agir em sede jurisdicional concentrada, sempre que o conteúdo normativo da regra estatal impugnada suscitar, como na espécie, discussão sobre questões concernentes às prerrogativas institucionais, direitos e interesses dos Procuradores do Estado e da própria Advocacia de Estado.
Assiste razão, portanto à ANAPE, quando sustenta dispor de legitimação para agir, perante o Supremo Tribunal Federal, em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade, e, ainda, quando afirma registrar-se, na espécie, a presença do vínculo de pertinência temática:
“A legitimidade ativa da ANAPE para a provocação do controle abstrato de constitucional idade em face de preceitos atinentes à mesma matéria aqui debatida já foi reconhecida por esta Excelsa Corte, sendo bastante mencionar o julgamento de mérito das ADI’s nºs 1557, relatora Ministra Ellen Gracie; 1679, relator Ministro Gilmar Mendes; e 4261, da relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto.
Esse reconhecimento da relação de pertinência temática entre os objetivos institucionais dessa entidade de classe de âmbito nacional e o interesse específico na impugnação estabeleceu premissa segundo a qual a representação e a consultoria dos Estados e do Distrito Federal são prerrogativas institucionais e exclusivas dos Procuradores dessas unidades federadas.” (grifei)
Tenho para mim, desse modo, que a ANAPE possui legitimidade ativa “ad causam” para promover a presente ação direta de inconstitucionalidade.
6. Possibilidade jurídica de o Advogado-Geral da União pronunciar-se, eventualmente, pela inconstitucionalidade do ato normativo impugnado. Precedentes.
Observo, de outro lado, que o eminente Advogado-Geral da União, ao pronunciar-se pela parcial inconstitucionalidade do diploma legislativo ora impugnado, justificou a possibilidade de assim proceder, considerada a “autonomia do Advogado-Geral da União [para] contrapor-se à constitucionalidade das normas submetidas ao seu exame. na jurisdição concentrada de constitucionalidade, notadamente quando houver precedente no mesmo sentido” (grifei).
Entendo assistir plena razão, por isso mesmo, ao eminente Advogado – Geral da União quando sustenta ser possível, não obstante a regra inscrita no art. 103, § 3º, “in fine”, da Constituição, manifestar-se pela inconstitucionalidade do ato estatal impugnado em sede de controle abstrato, uma vez existindo precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal na matéria em discussão.
A jurisprudência desta Suprema Corte já se consolidou no sentido de que o Advogado-Geral da União – que, em princípio, atua como curador da presunção de constitucionalidade do ato impugnado (RTJ 131/470 – RTJ 131/958 – RTJ 170/801-802, v.g.) – não está obrigado a defender, incondicionalmente, o diploma estatal, se este veicular conteúdo normativo já declarado incompatível com a Constituição da República pelo Supremo Tribunal Federal em julgamentos proferidos no exercício de sua jurisdição constitucional:
“ATUAÇÃO DO ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO NO PROCESSO DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO.
– O Advogado-Geral da União – que, em princípio, atua como curador da presunção de constitucionalidade do ato impugnado (RTJ 131/470 – RTJ 131/958 – RTJ 170/801-802, v.g.) – não está obrigado a defender o diploma estatal, se este veicular conteúdo normativo já declarado incompatível com a Constituição da República pelo Supremo Tribunal Federal em julgamentos proferidos no exercício de sua jurisdição constitucional. Precedentes.”
(ADI 2.681-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Vale rememorar, no ponto, que o Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, já teve a oportunidade de advertir que “o Advogado-Geral da União não está obrigado a defender tese jurídica se sobre ela esta Corte já fixou entendimento pela sua inconstitucionalidade” (ADI 1.616/PE, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – grifei). Esse entendimento jurisprudencial veio a ser reafirmado quando do julgamento da ADI 2.101/MS, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, e da ADI 3.916/DF, Rel. Min. EROS GRAU.
Sob tal perspectiva, revela-se plenamente legítima, portanto, a posição jurídica adotada, nesta sede de fiscalização normativa abstrata, pelo Senhor Advogado-Geral da União.
7. O significado e o alcance da regra inscrita no art. 132 da Constituição da República: exclusividade e intransferibilidade, a pessoas estranhas ao quadro da Advocacia de Estado, das funções constitucionais de Procurador do Estado e do Distrito Federal. Doutrina. Precedentes do STF.
Superadas as questões preliminares, passo a analisar o pedido de suspensão cautelar de eficácia das normas legais ora impugnadas.
A autora questiona a validade de referidas normas legais, por entendê-las incompatíveis com a cláusula fundada no art. 132 da Constituição da República:
“Essa regra do art. 132 instituiu uma mitigação da capacidade de auto-organização que resulta da autonomia dos Estados (art. 25, § 1º, da Constituição), ao determinar que a presença dos Procuradores na organização administrativa do Estado é obrigatória e inafastável. Assim, a previsão, por qualquer lei, de que outros agentes públicos exerçam funções similares ou coincidentes representa uma burla à vontade do constituinte.
A previsão, em sede constitucional, da atuação dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, obrigatoriamente organizados em carreira, radicou na necessidade, verificada durante o funcionamento da Assembleia Nacional Constituinte, de se garantir às Unidades Federadas um corpo jurídico estruturado e bem preparado para as tarefas de orientação jurídica, com isenção e imparcialidade, e defesa da legalidade e da constitucionalidade em todos os contextos de funcionamento da Administração Pública estadual.
Esses requisitos constitucionais de investidura, aliados ao caráter efetivo do provimento, asseguram requisitos mínimos de qualificação e independência funcional, além de impessoalidade e tecnicalidade com os quais a função deve ser exercida. Afasta-se, assim, desses cargos, a figura dos protegidos políticos, dos pareceres encomendados, da defesa propositadamente deficiente. A preocupação fica ainda mais relevante na área de licitações e contratos. Ora, como admitir a atuação de um comissionado em tais casos? Qual o requisito para a investidura num cargo assim? Ora, não precisa mais que uma assinatura do governador.
A mínima experiência de vida demonstra que se um titular de cargo demissível ad nutum ‘contrariar interesses’ será, certamente, substituído imediatamente por alguém que se dobre em troca do cargo.” (grifei)
Os padrões normativos de confronto são aqueles consubstanciados no art. 132 da Constituição – que conferiu aos Procuradores do Estado, organizados em carreira na qual o ingresso depende de concurso público de provas e de títulos, o monopólio das funções consultivas e de assessoramento na área jurídica – e no art. 69 do ADCT, que admitiu a coexistência de Consultorias Jurídicas e de Procuradorias-Gerais naquelas unidades da Federação onde essa dualidade orgânica já existisse à época da promulgação da Lei Fundamental.
A Constituição de 1988 prescreve, em seu art. 132, o que se segue:
“Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas.
Parágrafo único. Aos procuradores referidos neste artigo é assegurada estabilidade após três anos de efetivo exercício, mediante avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias.” (grifei)
A outorga dessas funções jurídicas à Procuradoria-Geral do Estado – mais precisamente aos Procuradores do Estado – decorre de um modelo estabelecido pela própria Constituição Federal, que, ao institucionalizar a Advocacia de Estado, delineou o seu perfil e discriminou as atividades inerentes aos órgãos e agentes que a compõem.
O conteúdo normativo do art. 132 da Constituição da República revela os limites materiais em cujo âmbito processar-se-á a atuação funcional dos integrantes da Procuradoria-Geral do Estado e do Distrito Federal. Nele, contém-se norma de eficácia vinculante e cogente para as unidades federadas locais, que não permite conferir a terceiros – senão aos próprios Procuradores do Estado e do Distrito Federal – o exercício, intransferível e indisponível, das funções de representação judicial e de consultoria jurídica da respectiva unidade federada.
JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 637, item n. 19, 36ª ed., 2013, Malheiros), após vincular as funções institucionais da Procuradoria-Geral do Estado ao domínio da Advocacia Pública (ou de Estado) e ao concluir pela inalterabilidade e indisponibilidade das funções institucionais deferidas aos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, expende magistério irrepreensível sobre o tema:
“Procuradorias e consultorias estaduais. A carreira de Procurador de Estado e do Distrito Federal foi institucionalizada em nível de Constituição Federal. Isso significa a institucionalização dos órgãos estaduais de representação e de consultoria dos Estados, uma vez que os Procuradores a que se incumbe essa função, no art. 132 daquela Carta Magna, hão de ser organizados em carreira dentro de uma estrutura administrativa unitária em que sejam todos congregados, ressalvado o disposto no art. 69 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que autoriza os Estados a manter consultorias jurídicas separadas de suas Procuradorias-Gerais ou Advocacias-Gerais, desde que, na data da promulgação da Constituição, tenham órgãos distintos para as respectivas funções (…).
Essa disposição transitória teve a vantagem de enunciar os órgãos a que, nos Estados e Distrito Federal, incumbem a respectiva representação judicial e serviços de consultoria, quais sejam: Procuradorias-Gerais (…) ou Advocacias-Gerais (…). Então, temos, combinado o disposto no art. 132 e com o art. 69 do ADCT, a institucionalização das Procuradorias-Gerais dos Estados e das Advocacias-Gerais, onde houver, sem prejuízo de que cada Estado fique com a liberdade de alterar a denominação, entre aquelas, mas não de mudar suas funções de representação e consultoria, nem a denominação de seus membros: Procurador do Estado ou do Distrito Federal, inclusive para o órgão com o nome de Advocacia-Geral do Estado.
Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, que receberão remuneração na forma de subsídio, consoante o art. 39, § 4º (EC-19/98), hão de ser organizados em carreira, na qual ingressarão por concurso público de provas e títulos (art. 132), com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, em todas as suas fases, assegurada a eles a estabilidade após três anos de efetivo exercício, mediante avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias (EC-19/98). É, pois, vedada a admissão ou contratação de advogados para o exercício das funções de representação judicial (salvo, evidentemente, impedimento de todos os Procuradores) e de consultoria daquelas unidades federadas, porque não se deram essas funções aos órgãos, mas foram diretamente imputadas aos Procuradores.” (grifei)
Também CELSO BASTOS (“Curso de Direito Constitucional”, p. 341, 11ª ed., 1989, Saraiva), publicista eminente, perfilha igual entendimento, acentuando que o constituinte federal, após institucionalizar as Procuradorias-Gerais no plano dos próprios Estados-membros, contemplou a figura do Procurador do Estado e a este deferiu, em específica norma de atribuição, “a incumbência de exercer a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas”.
Por essa razão, o saudoso Professor TOMÁS PARÁ FILHO, da Faculdade de Direito da USP, ao examinar a natureza e os fins jurídico – institucionais da Advocacia de Estado (RPGESP, vol. 2/286-287), assevera que “o Procurador do Estado é, e deve ser, órgão de colaboração e representação, fora do ordenamento estritamente burocrático. Sua atividade corresponde, tão só, à advocacia preventiva e ativa em prol do Estado” (grifei).
A representação institucional do Estado-membro em juízo ou em atividade de consultoria jurídica traduz prerrogativa de índole constitucional outorgada, pela Carta Federal (art. 132), aos Procuradores do Estado. Operou-se, nesse referido preceito da Constituição, uma inderrogável imputação de específica atividade funcional cujos destinatários são, exclusivamente, os Procuradores do Estado.
Assim sendo, há de se ter presente, no exame do tema, a nova realidade constitucional emergente da Carta Federal de 1988, que institucionalizou, no plano da Advocacia Pública local, a Procuradoria-Geral dos Estados, órgão ao qual incumbe, “ope constitutionis”, dentre outras atribuições, a consultoria jurídica da própria unidade federada, inclusive de seu Poder Executivo.
No contexto normativo que emerge do art. 132 da Constituição, e numa análise preliminar do tema, compatível com o juízo de delibação ora exercido, parece não haver lugar para nomeações em comissão de pessoas, estranhas aos quadros da Advocacia de Estado, que venham a ser designadas, no âmbito do Poder Executivo, para o exercício de funções de assistência, de assessoramento e/ou de consultoria na área jurídica.
A exclusividade dessa função de consultoria remanesce, agora, na esfera institucional da Advocacia Pública, a ser exercida, no plano dos Estados-membros, por suas respectivas Procuradorias-Gerais e pelos membros que as compõem, uma vez regularmente investidos, por efeito de prévia aprovação em concurso público de provas e de títulos, em cargos peculiares à Advocacia de Estado, o que tornaria inadmissível a investidura, mediante livre provimento em funções ou em cargos em comissão, de pessoas para o desempenho, no âmbito do Poder Executivo do Estado-membro, de atividades de consultoria ou de assessoramento jurídicos.
Extremamente precisa, quanto a esse ponto, a lição de MÁRIO BERNARDO SESTA (“Advocacia de Estado: Posição Institucional”, “in” Revista de Informação Legislativa, vol. 117/187-202, 198, 1993):
“Assim, são incompatíveis com a caracterização da Advocacia do Estado, salvo em hipóteses excepcionais, as formas de investidura marcadas pela precariedade, tais como o comissionamento, a contratação e qualquer outra modalidade de admissão de Advogados para o exercício dessa competência, que os deixe sujeitos ao ‘nuto’ de quem os tenha nomeado, admitido ou contratado.
A investidura institucional pressupõe, no mínimo, que os agentes da Advocacia do Estado sejam investidos em cargo público de provimento efetivo, só acessível mediante concurso público, e que a competência que lhes é própria decorra, no mínimo, da lei e, não, de ato administrativo.
O constituinte brasileiro, coerente com a visão que adotou da tutela do interesse estatal como função essencial à justiça, elevou a institucionalização da investidura dos agentes da Advocacia do Estado ao nível constitucional federal (CF/88, arts. 131 e 132), estabelecendo um novo marco na caracterização da atividade no contexto institucional brasileiro.” (grifei)
Essa prerrogativa institucional, que é de ordem pública, encontra assento na própria Constituição Federal. Não pode, por isso mesmo, comportar exceções nem sofrer derrogações sequer previstas ou autorizadas pelo próprio texto da Lei Fundamental.
Cabe registrar, por relevante, que esta Suprema Corte, ao apreciar o alcance do dispositivo constitucional ora em exame (CF, art. 132), firmou diretriz jurisprudencial no sentido de que o desempenho das atividades relacionadas à consultoria e ao assessoramento jurídicos prestados ao Poder Executivo estadual traduz prerrogativa outorgada, pela Carta Federal, exclusivamente aos Procuradores do Estado e do Distrito Federal (RTJ 166/94, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 192/473-474, Rel. Min. ELLEN GRACIE – ADI 484/PR, Red. p/ acórdão Min. RICARDO LEWANDOWSKI – ADI 1.679/GO, Rel. Min. GILMAR MENDES, v.g.), valendo referir, por serem expressivas dessa orientação, decisões plenárias do Supremo Tribunal Federal consubstanciadas em acórdãos assim ementados:
“CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ANEXO II DA LEI COMPLEMENTAR 500, DE 10 DE MARÇO DE 2009, DO ESTADO DE RONDÔNIA. (…). MÉRITO. CRIAÇÃO DE CARGOS DE PROVIMENTO EM COMISSÃO DE ASSESSORAMENTO JURÍDICO NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA. INCONSTITUCIONALIDADE.
…………………………………………………………………………………………
2. A atividade de assessoramento jurídico do Poder Executivo dos Estados é de ser exercida por procuradores organizados em carreira, cujo ingresso depende de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, nos termos do art. 132 da Constituição Federal. Preceito que se destina à configuração da necessária qualificação técnica e independência funcional desses especiais agentes públicos.
3. É inconstitucional norma estadual que autoriza a ocupante de cargo em comissão o desempenho das atribuições de assessoramento jurídico, no âmbito do Poder Executivo. Precedentes.
4. Ação que se julga procedente.”
(ADI 4.261/RO, Rel. Min. AYRES BRITTO – grifei)
“(…) 5. Viola o art. 37, incisos II e V, norma que cria cargo em comissão, de livre nomeação e exoneração, o qual não possua o caráter de assessoramento, chefia ou direção. Precedentes. Inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados em relação aos cargos de Subprocurador-Geral do Estado e de Procurador de Estado Chefe. 6. Ação julgada parcialmente procedente.”
(ADI 2.682/AP, Rel. Min. GILMAR MENDES – grifei)
8. Configuração, na espécie, dos requisitos caracterizadores da plausibilidade jurídica e do “periculum in mora”.
Tendo presentes, desse modo, o conteúdo e o alcance da norma inscrita no art. 132 da Constituição, considero densa a plausibilidade jurídica da pretensão de inconstitucionalidade deduzida pela ANAPE.
A autora, ao formular sua pretensão cautelar, bem demonstrou a ocorrência, na espécie, do requisito pertinente ao “periculum in mora”, fazendo-o nos seguintes termos:
“Por outro lado, tem-se a presença do ‘periculum in mora’ consubstanciada inicialmente na prática de atos nulos, materializados em inúmeros pareceres jurídicos que são exarados em diversos ramos do direito público (seja em matéria de licitações e contratos, operações de crédito externo, servidores públicos, bens do domínio estadual, matéria previdenciária etc.) através de servidores que usurpam atribuições constitucionais dos Procuradores do Estado. A problemática somente tende a aumentar, a cada dia, com a insegurança jurídica e o grave risco de dilapidação do Erário, o que revela o grande interesse público envolvido. Essa circunstância foi e está sendo ressaltada pelo Tribunal de Contas Paraibano, conforme documentos anexos, o que pode gerar repercussões aos gestores.
Some-se a isso a cotidiana preterição dos Procuradores do Estado na atividade de consultoria jurídica, em perene e constante afronta ao preceptivo constitucional cuja violação sustenta o presente pleito.” (grifei)
Impõe-se relembrar, ainda, ante a sua extrema pertinência, decisão desta Corte na ADI 159/PA, onde se impugnava a transformação de cargos de Assistente Jurídico em outros de Consultor Jurídico, com os mesmos direitos e deveres de Procurador do Estado. Ao deferir a medida cautelar postulada – entendimento que afinal prevaleceu –, o eminente Relator, Ministro OCTAVIO GALLOTTI, assim se pronunciou (RTJ 132/38-39):
“Mesmo sem levar estritamente em conta o vulto dos encargos financeiros comprovados, o Supremo Tribunal, atento ao pressuposto de relevante conveniência pública, tem atendido ao requerimento de provimento cautelar, quando a alegação, revestida de razoabilidade, recaia sobre pontos particularmente sensíveis dos princípios que norteiam a Administração do Estado, entre eles o da exigência do concurso público (…).” (grifei)
9. Deferimento parcial, “ad referendum” do Plenário (RISTF, art. 21, V), do pedido de suspensão cautelar.
Sendo assim, e nos termos dos pareceres do eminente Advogado-Geral da União e da douta Procuradoria-Geral da República, defiro, em parte, “ad referendum” do E. Plenário desta Suprema Corte (RISTF, art. 21, V), o pedido de medida cautelar, para suspender, até final julgamento da presente ação direta, a eficácia, a execução e a aplicabilidade da alínea “a” do inciso I do art. 3º da Lei estadual nº 8.186, de 16 de março de 2007 (unicamente quanto à expressão “na elaboração de documentos jurídicos”) e dos itens ns. 2 a 21 (exclusivamente nos pontos que concernem a cargos e a funções de consultoria e de assessoramento jurídicos) do Anexo IV da mesma Lei nº 8.186, de 16 de março de 2007, alterada pelas Leis nºs. 9.332/2011 e 9.350/2011, todas editadas pelo Estado da Paraíba.
Comunique-se a presente decisão à autora desta ação direta, ao Senhor Governador do Estado da Paraíba e à Augusta Assembleia Legislativa dessa mesma unidade da Federação.
Publique-se.
Brasília, 19 de dezembro de 2013.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
*decisão publicada no DJe de 3.2.2014